AS REPRESENTAÇÕES RUPESTRES DO COMPLEXO POÇO DA BEBIDINHA
A pesquisa desenvolvida por Wellington Lage intitulada "Por entre rochedos bordados passa um rio: um olhar da Gestalt para efetuar uma leitura do passado" no âmbito do doutorado em Arqueologia pela Universidade de Coimbra, Portugal, sobre os grafismos rupestres encontrados no sítio arqueológico da Bebidinha revela detalhes significativos sobre a história e as práticas dos povos pré-históricos que habitaram a região. Durante o trabalho de campo do pesquisador, foi escolhida uma área de aproximadamente 25% da totalidade do sítio, delimitada pela grande concentração de grafismos. Essa escolha foi motivada não apenas pela abundância de representações, mas também pela dificuldade de acesso e pelo tempo limitado disponível para a conclusão da referida pesquisa.
A equipe percorreu cerca de 1.000 metros ao longo das duas margens do rio Poti, documentando meticulosamente as gravuras pré-históricas localizadas nas paredes rochosas do cânion e em blocos isolados no leito do rio. Para garantir a precisão dos dados, foi utilizado um GPS para registrar 22 pontos geográficos, que foram agrupados em unidades denominadas "conjuntos". Esses conjuntos foram organizados em 11 painéis, facilitando a análise posterior dos grafismos.
Além de registrar as imagens, o estudo de Wellington Lage também se dedicou a avaliar o estado de conservação das superfícies rochosas que abrigam as gravuras. Em várias áreas, foi notado que as rochas apresentavam características diferentes: superfícies lisas, brilhantes e bem distintas das áreas não decoradas. Isso sugere que essas rochas podem ter recebido algum tipo de tratamento prévio, como polimento ou "envernizamento", para garantir que as gravuras fossem melhor fixadas e preservadas.

Esse cuidado com a preparação do suporte rochoso revela uma técnica adaptativa e sofisticada dos povos que realizaram as representações.
Outro aspecto relevante da pesquisa é a quantidade de gravuras documentadas, que somam cerca de mil representações. Essas gravuras estão dispostas de maneira agrupada, nas paredes rochosas e em blocos isolados ao longo do rio. Em alguns casos, as gravuras foram feitas em nichos pouco profundos, formados provavelmente pela ação do fluxo de água durante o período de cheias. Isso indica uma interação direta e consciente dos povos antigos com o ambiente natural ao seu redor, adaptando suas práticas artísticas às características geológicas e sazonais da região.
O complexo rochoso no sítio arqueológico (neste caso, o estudo foi realizado na Fazenda Espírito Santo) apresenta uma altura que varia de 12m a 20m, com as gravuras distribuídas ao longo das superfícies rochosas desde o nível do rio até uma altura de 2m. A maior parte das representações é composta por grafismos não-figurativos, como bastões, linhas, cupules, tridígitos e círculos, evidenciando uma diversidade de formas e composições.
Dentre as representações, destaca-se uma configuração recorrente formada por dois, quatro, seis ou oito círculos concêntricos, dispostos lado a lado e separados verticalmente por um bastão. Os círculos apresentam uma grande variedade em sua forma de execução..
Imagem 2: Formas de representações em círculos. Fonte: Lage, Wellington, 2012. p.71
Imagem 3: formas de e representação da base dos bastões. Fonte: Lage, Wellington, 2018. p.71.
Alguns são representados de maneira vazia, outros preenchidos, enquanto outros ainda possuem características como cupules (pequenas cavidades ou depressões na rocha) ou uma combinação dessas variações
Imagem 4: Círculo concêntrico com cupule ao centro. Fonte: Lage, Wellington, 2018. p.72.
Imagem de círculo concêntrico Localidade Fazenda Espírito Santo. Fonte: autores da pesquisa. 2024.
Imagem 5: Círculos cheios. Fonte: Lage, Wellington, 2018. p.72.
Imagem: dois círculos do tipo vazio/cupule, distribuídos lado a lado e separados por um bastão vertical tipo simples. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 72.
Imagem 6 : Quatro círculos concêntricos vazio/cupule. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 72.
Imagem 7 : – Bastão de base anelar. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 72.
Imagem de bastões de base anelar. Localidade Bebedouro. Fonte: autores da pesquisa. 2024.
Imagem: bastão de base circular. Localidade fazenda Espírito Santo. Fonte: autores da pesquisa, 2024.
Imagem 8 : – Bastão de base tripla que agrega apêndices à base tripla tipo “espinha de peixe”. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 72.
As cupules, são as menores Unidades dos grafismos do sítio Bebidinha, geralmente estão inseridas nos princípios da Continuidade, Fechamento, Semelhança (as igualdades de forma desperta também a tendência de se constituir unidades, isto é, de estabelecer agrupamentos de partes semelhante) e Proximidade (elementos ópticos próximos uns dos outros tendem a ser vistos juntos e, por conseguinte, a constituírem um todo ou unidades dentro do todo).[1]
Imagem 9 : Cupules em linha. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 74.
Imagem cupules em linha. Fonte: autores da pesquisa. Localidade Bebedouro. 2024.
Imagem 10: Cupules reclusas. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 73.
Imagem: Cupules em cascata. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 74.
Imagem de cupules em cascata. Localidade Fazenda Espírito Santo. Fonte: autores da pesquisa. 2024.
Imagem 11: Cupules associadas a bastões. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 73.
Imagem de cupules em cascata. Localidade Fazenda Espírito Santo. Fonte: autores da pesquisa. 2024.
Os tridígitos ou as pegadas de aves, também estão representados em toda a extensão do sítio.
Imagem 12: Tridígitos de pegada de ave. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 75.
Geralmente aparecem isoladamente, não fazendo parte de uma composição. Em algumas áreas, as gravuras encontram-se na plataforma do piso e não nas paredes. Segundo moradores do local, tal fato ocorre em razão dessas figuras serem a “representação do céu”. Utilizando o senso comum e aplicando o princípio da Semelhança, a imagem abaixo poderia representar “uma estrela”?
Imagem 13: Representação “estelar”. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 75.
Esses mesmos moradores, influenciados por pessoas que visitam o local têm especial atenção à gravura denominada “relógio solar” ( imagem 14). No entanto, ao se comparar ambas as figuras, percebe-se que o “sol” apresenta uma imagem simples contendo um círculo concêntrico com seu interior raiado. De uma forma mais complexa, o “relógio solar” (imagem 15) apresenta dois círculos concêntricos raiados em seu interior
Imagem 14: Representação “solar”.Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 75.
Imagem 15: “Relógio solar”. Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 75.
Imagem presente na localidade Bebedouro. Fonte: autores da pesquisa. 2024.
Em menor número, porém significativas, as representações figurativas apresentam formas facilmente identificáveis. Destacam-se:
- serpentiformes (imagem 16)
Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 76.
Fonte: autores da pesquisa, localidade Bebedouro. 2024.
- mãos (Figura 17);
Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 76.
Fonte: autores da pesquisa. Localidade Bebedouro, 2024.
- antropomorfos(Figura 18). As representações antropomorfas referem-se à atribuição de características humanas a seres não humanos, como animais, objetos ou até mesmo conceitos abstratos. A palavra vem do grego "anthropos" (humano) e "morphe" (forma), indicando algo que tem uma forma humana.
Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 76.
d. sáurios (Figura 18)
Fonte: Lage, Wellington, 2018, p. 76.
Essa diversidade nas representações sugere uma linguagem simbólica rica e complexa, possivelmente relacionada a rituais, marcas territoriais ou outras formas de expressão cultural dos povos que habitaram a região. As variações de forma, como os círculos vazios, cheios, com cupules, e combinações desses elementos, podem indicar diferentes significados ou categorias dentro do sistema de representação desses povos pré-históricos. Além disso, a disposição e organização desses grafismos nas superfícies rochosas indicam um cuidado com o espaço e uma intencionalidade na escolha do local de registro.
A pesquisa também revela um dado interessante sobre a dinâmica do ambiente. Muitos dos blocos rochosos que abrigam as gravuras estão sujeitos às variações no nível do rio. Durante a cheia, as áreas podem ser submersas, e durante a estiagem, ficam totalmente expostas. Esse ciclo de submersão e exposição pode ter impactado o estado de conservação das gravuras, tornando-as vulneráveis à erosão e a outros processos de degradação, o que destaca a importância de preservação e monitoramento contínuo dessas áreas.
A pesquisa de Wellington Lage oferece uma análise detalhada e enriquecedora sobre os grafismos rupestres no sítio arqueológico. Ela não apenas documenta a quantidade e distribuição das representações, mas também revela o engenhoso cuidado e adaptação dos povos pré-históricos ao seu ambiente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- LAGE, Welington. Por entre rochedos bordados passa um rio: um olhar da Gestalt para efetuar uma leitura do passado, 2018. 304 f. Tese (Tese de doutorado em Arqueologia) – Universidade de Coimbra, Coimbra, 2018. p.26.
GOMES FILHO, J. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. São Paulo: Escrituras, 2002.p.34 ↑
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